11. Religião filosófica.


11. Religião filosófica. 

Na primeira matéria da Revista Espírita de dez/1868, que traz seu último discurso à Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, por ele fundada havia onze anos, Kardec diz que, sim, no sentido filosófico: comunhão de pensamentos, sentimentos, princípios e crenças, o espiritismo é uma religião; ao mesmo tempo em que esclarece que não o é na acepção usual do termo: liturgia, culto, forma. Defendido pelo presidente espiritual da SPEE, São Luís, e por seu presidente físico, Allan Kardec, o espiritismo é o cristianismo da Idade moderna, apropriado ao desenvolvimento da inteligência e isento dos abusos.[1] Para o mestre, a doutrina é inseparável das ideias religiosas, principalmente das cristãs, sendo a negação dessas ideias uma igual negação do espiritismo; o cristianismo, tal qual saiu da boca de Jesus, e apenas tal qual dali saiu, é invulnerável, porque lei de Deus.[2] Sob tal ótica, o espiritismo só não seria uma religião se o próprio cristianismo não o fosse. Mediante a sensitiva srta. Japhet, em Paris, aos 30/4/1856, houve a primeira revelação da tarefa espiritual do professor Kardec. Por psicografia mediata, foi-lhe dito que, sim, deixaria de haver religião, mas uma se faria necessária, verdadeira, grande, bela e digna do Criador; que, justo aí, estava a sua missão: evidenciar a religião natural, que parte do coração diretamente a Deus, como psicografado a 15/4/1860 acerca do futuro do espiritismo, em Marselha, pelo médium sr. Brion Dorgeval.[3] Quando Kardec nega ser o espiritismo uma religião, o faz, pois, ao sentido litúrgico, que remete a igrejas constituídas, sacerdócios organizados; nega, desse modo, tão só a acepção usual do termo, se aplicada ao espiritismo. Roustaing, Bezerra de Menezes, Emmanuel e todo séquito de jesuítas d’além-túmulo fizeram dele um catolicismo com reencarnação e mediunidade, uma igreja reformada, o que nada tem a ver com o cristianismo da Idade moderna proclamado em França por Kardec, São Luís, Erasto et alii, sob a inspiração do Espírito da verdade. No entanto, há quem evite essa fina distinção histórica e queira um espiritismo laico a todo custo, sob a alegação de que a obra kardeciana não excede um esforço demasiado de conciliação da doutrina espírita com a teologia católica. Ah! o laicismo, essa flor de estufa estatal, onde, aí sim, deve ser padrão; ao Estado, cabe ser laico por definição; mas o espiritismo stricto sensu, kardecista, não é um Estado, sim uma doutrina, cujas características são de totalidade, o que não pode nem deve excluir a religião, menos ainda a cristã, como não exclui a ciência nem a filosofia. No sentido filosófico bem autorizado pelo mestre e pelo qual chegou a se gloriar, a religião do espiritismo possui até credo, que Kardec diz ser capaz de conciliar-se com todos os cultos, com todas as maneiras de adorar a Deus, sendo o laço que deve unir todos os espíritas numa santa comunhão de pensamentos, esperando que ligue todos os homens sob a bandeira da fraternidade universal. 

A importância desse último discurso de Kardec à sua SPEE está no fato de que, nele, o mestre explica por que sempre negou que o espiritismo fosse uma religião. Ali, tal negativa vem motivada pela primeira e única afirmação de que o espiritismo é, sim, uma religião, ainda que sem culto e forma, do que Kardec, repito-o, até se gloria. Em boa semiótica, restam duas respostas ao mote do discurso: O espiritismo é uma religião? 1) Sim, na acepção filosófica, larga e verdadeira do termo: comunhão de pensamentos, sentimentos, princípios e crenças; 2) Não, no seu sentido usual, de culto e forma.[4] E veio bem a calhar ao futuro da doutrina essa oportuna ambivalência. Na prática, o espiritismo é, hoje, uma religião; do contrário, bem pouca coisa representaria na sociedade contemporânea. Lato sensu, espíritas sempre foram os que tão só creem nas manifestações dos espíritos e, por isso, um número agigantado assim se pode identificar com razão, mesmo a contragosto dos mais ortodoxos. Kardec não queria ser chefe nem papa, embora soubesse ter uma missão. Cumpriu-a com equilíbrio incomum, modéstia singular, e chamou para si a responsabilidade máxima quando isso foi necessário, como se viu no projeto da constituição transitória do espiritismo, em que o mestre visou diminuir o número aparente de espíritas, tentando conferir maior coesão ao grupo vinculado somente a suas publicações; sem êxito, entretanto.[5] Na época de instauração da doutrina só havia lugares de frequência para adeptos das outras escolas. As pessoas iam às igrejas, às sinagogas, às mesquitas, às academias, e faziam experimentos mediúnicos em casa, ou na de parentes e amigos. E era (e continua a ser) suficiente para serem espíritas; Kardec, porém, de boa mente, já alertava que havia espíritas e espíritas.[6] Com a multiplicação das sociedades espíritas e, sobretudo, a crescente hostilidade da ciência e das religiões havida contra, sobretudo, a popularidade do espiritismo, os espíritas substituíram um comportamento por outro. Em vez de irem às igrejas, às academias, passaram a frequentar os núcleos espíritas. Donde o gérmen das arengas entre místicos e científicos no espiritismo. 

Como ciência, não foi aceito. Como filosofia, pouquíssimo; sempre acusado de misticismo. Restou o quê? A religião. Essa, a frieza glacial do processo histórico do espiritismo. E nenhuma novidade haveria nele para Kardec. Em 1863, já pressentira o mestre, que um dos períodos de instalação social da doutrina espírita seria justamente o período religioso.[7] Os espíritos definiram a própria missão dizendo estarem encarregados de preparar o reino de Deus anunciado por Jesus, sendo necessário que ninguém venha a interpretar a lei de Deus ao sabor das suas paixões, nem falsear o sentido de uma lei que é, toda, amor e caridade.[8] Não é isso religião? Sim, é. E com dimensão profética. É filosofia? Também. Pode ser justificado numa ciência não restrita ao materialismo? Decerto. Mas, para quem mais, além de nós, os espíritas, especialmente os kardecistas? Os que repelem a palavra religião, em prol de clareza à divulgação do espiritismo, desconhecem esse processo histórico, ou não o admitem. Ademais, nenhuma palavra sequer, de qualquer dicionário que seja, detém um significado invariável. Bem oportuno é este, aos fins da religião filosófica do espiritismo: “Religião. (...) modo de pensar ou agir escrupulosamente; princípios: Ex.: Minha religião é praticar o bem”.[9] Mesmo ciência se presta a semânticas múltiplas; doutro modo, não existiria uma parte da filosofia que se debruça sobre o que seria de fato conhecimento: a epistemologia. E tão proeminente se tornou essa parte da filosofia, que chega mesmo a absorvê-la. Fato que Kardec indicou os fins a que deveriam chegar todos os que, superando a mera experimentação mediúnica, compreendessem o que ele chamou de espiritismo filosófico. Não coincidentemente, o primeiro desses objetivos é o desenvolvimento do sentimento religioso, sendo os demais, a resignação em face das vicissitudes da vida e a indulgência para com todos os defeitos alheios.[10] Bem científico, não? 

Se o mestre evitou a palavra religião no seu sentido usual, é nesse sentido que estaremos obrigados a afastá-la. Se a aplicou ao espiritismo nos termos em que disso até se gloriou, é nessa acepção em que poderemos empregá-la. Em trechos daquela que constitui o repertório mais completo do espiritismo em seu tríplice aspecto: histórico, dogmático e crítico,[11] Kardec se refere, ipsis verbis, ao caráter essencialmente moral e religioso do espiritismo; a suas consequências filosóficas, morais e religiosas; que lhe moldam o fim essencial como obra humanitária e, a partir do que, o grande pedagogo assume a responsabilidade do que chama de espiritismo cristão; sim, o mestre, não a FEB.[12] Evidente, pois, o vínculo religioso da moralidade espírita, que assim bem se explica: “A razão prática, ou seja, a consciência moral não se basta, se o sujeito não for mobilizado por um impulso amoroso, por uma aspiração à transcendência, por um estado de ânimo que paute a sua conduta de forma rica e intensa. A moral sem a religiosidade é como a bússola que sequer pode ser vista sem o candeeiro. O homem que age de forma correta possui uma atitude louvável, mas o homem que age por amor torna a sua atitude sublimada. À medida que o espírito se eleva, não lhe satisfaz agir por dever, mas sim agir pela alegria de satisfazer os anseios de sua natureza essencial: amar mais e mais, buscar a Deus infinitamente. E essa sensibilidade espiritual se aguça através do exercício da religiosidade”.[13]

De fato religiosos, os racionalmente religiosos, como queria Kardec.[14] Dados eloquentes são as informações dicionárias: “es.pi.ri.tis.mo s.m. 1 doutrina baseada na imortalidade da alma, na reencarnação e na comunicação mediúnica 2 kardecismo”. — “kar.de.cis.mo s.m. doutrina religiosa, codificada por Allan Kardec, que prega a reencarnação ─ kardecista adj.2g.s.2g. ─ kardecístico adj.”[15] Sintomática, a sinonímia registrada para espiritismo e kardecismo, bem como a classificação do último: doutrina religiosa; o que já não acontece ao kantismo: “s.m. doutrina filosófica de Immanuel Kant”. Puro processo histórico. O espiritismo, stricto sensu, é mesmo um kardecismo religioso; no entanto detentor de todos os elementos para que não se chame doutrina espírita a ditados de um único espírito, por um único médium, a emitir opiniáticas esdrúxulas. Sustentar o espiritismo como religião filosófica não é servir a nenhum clero; mas vislumbrar sua interdisciplinaridade constitutiva. O que se impõe é a granítica lógica kardeciana que, nesse viés, não exclui, totaliza. Assim como Kardec, sou signatário do compromisso paradoxal entre Alexandre Busca e Jacó Satanás: “Nunca esquecer, ao atacar a religião em nome da verdade, que a religião pode dificilmente ser substituída e a pobre criatura humana está chorando nas trevas”.[16]


[1] Revista Espírita. Nov/1863: Dissertações espíritas. A nova torre de Babel. Jun/1865: Nova tática dos adversários do espiritismo. 

[2] Revista Espírita. Abr/1863: Suicídio falsamente atribuído ao espiritismo; jul/1864: A religião e o progresso. 

[3] Obras Póstumas. 

[4] Revista Espírita. Dez/1868. Sessão anual comemorativa do Dia dos Mortos. 

[5] Cf. cap. 24 deste livro: Spiritism e spiritisme. 

[6] O Livro dos Espíritos. Conclusão: VII. 

[7] Revista Espírita. Dez/1863. Período de Luta. 

[8] O Livro dos Espíritos, 627. 

[9] Dicionário Escolar da Língua Portuguesa, A.B.L., 2ª ed., 2008. 

[10] O Livro dos Espíritos. Conclusão: VII. 

[11] Disse-o Kardec, a respeito da Revista Espírita. Cf. Instruções Práticas sobre as Manifestações Espíritas. Introdução. 

[12] Revista Espírita. Mar/1864: Variedades. Abr/1866: O espiritismo independente. Nov/1867: Notas Bibliográficas: A razão do espiritismo, por Michel Bonnamy. O Livro dos Médiuns, n. 350. 

[13] SAYEGH, A. Ser para Conhecer, Conhecer para Ser. Filosofia Espírita. FEESP, 2004. Cap. VI, pp. 229/30. 

[14] A Gênese. XIII: 19. 

[15] Houaiss: Objetiva, 2001, pp. 179 e 265. 

[16] PESSOA, Fernando. Obras em Prosa. Volume único. Nova Aguilar, 1998, p. 33.