15. Perispírito.


15. Perispírito. 

15.1. Inorgânico. 

Há, no corpo físico, formas diversas de compactação da matéria: líquida, gasosa, gelatinosa, sólida. E não se conclui que haja vários corpos. Por idêntico, Kardec se reportou ao perispírito, substância semimaterial que seria o primeiro envoltório da alma;[1] uma espécie de elemento intermediário que até possuiria certas propriedades da matéria; uma interface que, unida ao corpo, molécula por molécula, durante os estados de encarnação,[2] teria feito da própria alma uma coautora da evolução biológica; o que reabilitaria Lamarck sem negar Wallace e Darwin. C'est l'Esprit lui-même qui façonne son enveloppe et l'approprie à ses nouveaux besoins: É o próprio espírito que conforma seu envoltório e o apropria a suas novas necessidades, segundo Kardec. Tradutores brasileiros optaram por fabrica, modela, embora não constem do original fabriquer ou modeler. Há boa sinonímia, porém, entre façonner e modeler: conformar, modelar.[3] O conceito de semimaterialidade traria per si essa coexistência de formas distintas de compactação fluídica no corpo espiritual. A porção mais densa viabilizaria sua união intramolecular com a matéria e sofreria mais de perto a compressão imposta pela carne. A porção menos grosseira conservaria mais flexibilidade e, decerto, justificaria os seguintes fatos: 1) o perispírito, apesar da união intramolecular com o corpo, não estaria circunscrito a este; irradiaria ao seu derredor, envolvendo-o numa atmosfera fluídica;[4] 2) na emancipação da alma, ou espírito, em pleno sono, essa porção menos grosseira seria a partie de son périsprit: parte do seu perispírito com a qual se afastaria do corpo.[5] Se uma porção do corpo fluídico seguiria com a alma na emancipação, outra necessariamente não o faria, porque só a morte restitui ao ser plena liberdade, apenas parcial no sono; o princípio vital, sem sede no perispírito, é que ainda o manteria, em parte, adeso ao corpo carnal; donde aquele lien fluidique: laço fluídico, ou traînée lumineuse, phosphorescente: rastro luminoso, fosforescente, pelo qual médiuns videntes e mesmo espíritos diferenciariam vivos fora do corpo de mortos.[6] Não haveria, portanto, corpos da alma, mas formas distintas de compactação fluídica no perispírito, o que levou Kardec a dizer que esse corpo etéreo, a um só tempo, conteria eletricidade, fluido magnético e, até certo ponto, a própria matéria inerte; metáforas possíveis à física de seu tempo.[7] O mestre chegou a sustentar que seria o perispírito o próprio princípio da vida orgânica; que a partida do espírito mataria o corpo; entretanto mudou de ideia a posteriori: a união intramolecular entre perispírito e corpo só ocorreria sob a influência do princípio vital do embrião e, por outra, a morte do corpo é que ensejaria a partida do espírito;[8] mediante seu perispírito, a alma transmitiria aos órgãos carnais, não a vida vegetativa, sim apenas os movimentos que exprimem sua vontade.[9] Por isso não se fala de corpos da alma na doutrina espírita: mental, causal, emocional, vital, etc.; inteligência, pensamento, vontade, memória, sentimento, todos os nossos atributos e faculdades, enfim, teriam sua sede na própria alma, i. e., no princípio inteligente individualizado, do qual o perispírito seria o único agente, o único instrumento de ação, o único órgão sensitivo.[10] Eis um ser integral, sem partes; que, com perispírito denso, ainda perceberia algo dos nossos sons, dos nossos odores, mas não por uma parte determinada, como quando vivo. Esse corpo fluídico seria, pois, inorgânico, antes constituindo, ele mesmo, o único órgão sensitivo da alma; donde Kardec dizer que, destruído o corpo, as sensações se tornariam generalizadas: não mais se localizariam em órgãos assemelhados aos que nos servem na Terra; não veríamos por olhos, não sentiríamos por tato, etc.[11] Mesmo assim, a alma teria seus atributos a se traduzirem nos fluidos que lhe constituem o corpo etéreo; a causa puramente metafísica tornar-se-ia efeito fluídico e, quiçá, material. Os pensamentos não seriam partículas, nem fluidos, nem matéria; todavia os alterariam e influenciariam, revelando-se sãos ou malsãos; atraindo-se os afins e repelindo-se os dessemelhantes. O espírito estenderia, pois, ao próprio corpo físico a sua influência mais ou menos determinante; tanto que Kardec assegurou que o perispírito se ligaria à fisiologia tão bem quanto à psicologia, sendo parte ativa de afecções orgânicas a serem combatidas pela medicina, através, exatamente, do conhecimento dessa interface semimaterial.[12] Modelo teórico tomado por empréstimo à ciência-irmã mais velha do espiritismo, o magnetismo animal, ou mesmerismo.[13]

15.2. Indestrutível. 

Sendo inorgânico, o perispírito não se destruiria; sua constituição é que se transformaria. Haveria mundos em que o espírito só teria esse corpo espiritual, inclusive; nos quais seria muitíssimo etéreo; a tal ponto que, para nós, seria como se não existisse: condição dos puros espíritos.[14] Tratar-se-ia do fluido universal, ou matéria elementar primitiva, em sua simplicidade absoluta.[15] Essa, a situação final. Do processo que a ela conduz, sabe-se que a substância do perispírito seria mais ou menos eterizada segundo os globos; que, passando de um a outro, os espíritos revestiriam a matéria própria de cada um, fenômeno cuja duração seria tão curta como a do relâmpago: d’aussi peu de durée que l’éclair.[16] A alma, pois, não poderia ficar sem o corpo espiritual. Pelo menos, não definitivamente. Só durante lapso tão rápido quanto instantâneo, ao mudar-se de mundo. Seria menos que brevíssima falta, de pronto recomposta, e somente nas ascensões evolutivas, nunca nos fictícios decessos de uma doutrina espírita que se desaprende em André Luiz et alii, acerca, p. ex., dos improváveis espíritos ovoides. Suscitado por inquiridores, Kardec até admitiu uma desagregação dos elementos constitutivos do perispírito na eventual troca de um por outro; uma metáfora, porém, de sua transformação. Ip. v.: “A cada novo estágio na erraticidade, novas maravilhas do mundo invisível se desdobram diante do seu olhar, porque, em cada um desses estágios, um véu se rasga. Ao mesmo tempo, seu envoltório fluídico se depura; torna-se mais leve, mais brilhante e mais tarde resplandecerá. É quase um novo espírito; é o camponês desbastado e transformado. Morreu o espírito velho, mas o eu é sempre o mesmo. É assim, cremos, que convém se entenda a morte espiritual”.[17]


[1] O Livro dos Espíritos, 134. 

[2] A Gênese, XI: 18. 

[3] A Gênese, XI, 11. 

[4] A Gênese, XI, 17. 

[5] O Livro dos Médiuns, 119, primeira pergunta. 

[6] O Livro dos Médiuns, 118 e 284; A Gênese, XI, 18. 

[7] O Livro dos Espíritos, 257. 

[8] A Gênese, XI: 18. 

[9] Revista Espírita. Dez/1862. Estudos sobre os possessos de Morzine. 3ª ed., F.E.B., 2007, p. 489. 

[10] O Livro dos Médiuns, 55. A Gênese, XIV: 22. 

[11] O Livro dos Espíritos, 257. A Gênese, XIV: 22. 

[12] A Gênese, I: 39. Obras Póstumas. Caráter e consequências religiosas das manifestações dos espíritos. § I — O perispírito como princípio das manifestações; n. 12. 

[13] Cf. cap. 4 deste trabalho: Ensino geral espírita. 

[14] O Livro dos Espíritos, 186. 

[15] O Livro dos Médiuns, 74, quinta pergunta. O Evangelho segundo o Espiritismo, IV: 24. 

[16] O Livro dos Espíritos, 187. Também O Livro dos Espíritos, 257; A Gênese, XIV: 8; O Evangelho segundo o Espiritismo, IV: 24. 

[17] Obras Póstumas. A morte espiritual. 32ª ed., F.E.B., 2002, p. 205. Também O Livro dos Médiuns, 55; A Gênese, I: 39.