23. Espiritismo e comunismo.


23. Espiritismo e comunismo. 

Inserta no terceiro dos discursos proferidos em Lyon e Bordeaux (1862), está a crítica de Kardec aos sistemas de reforma social que visam, ao fim, qualquer tipo de comunismo;[1] ao mesmo tempo, trata-se de uma defesa contra assertivas de adesão espírita a tais sistemas, no intuito de indispor a nova doutrina com a ditadura de Napoleão III, intrigas da Igreja católica, estreitamente ligada àquele regime. Concentra-se a crítica do mestre na inviabilidade desses sistemas por conta, sobretudo, do estado moral da humanidade, composta, segundo o espiritismo, por almas da terceira ordem da escala espírita, ou seja, nas quais a influência da matéria ainda é dominante, donde a origem do seu vício radical: o egoísmo, incompatível com a justiça, o amor e a caridade.[2] Tais sistemas levariam, no dizer de Kardec, a um estado de comunidade fundado na completa abnegação da personalidade e, por efeito, requerendo o devotamento mais absoluto, o que só se sustentaria, na opinião do mestre, havendo, em todos os homens, o móvel da abnegação: a caridade, o amor ao próximo. Baseado na evidente insuficiência dessas virtudes neste mundo — e, ao contrário do que fizera doutras vezes, sem divisar a relevância do meio social melhorado para uma consequente melhora dos indivíduos nele postos —, Kardec sentencia: 1) “a totalidade das riquezas, postas em comum, criaria uma miséria geral ao invés de uma miséria parcial”; 2) “a igualdade, estabelecida hoje, seria rompida amanhã pela mobilidade da população e a diferença entre aptidões”; 3) “a igualdade permanente de bens supõe a igualdade de capacidades e de trabalho”; 4) “A experiência aí está, diante de nossos olhos, para provar que eles não extinguem nem as ambições nem a cupidez. Antes de fazer a coisa para os homens, é preciso formar os homens para a coisa. (...) de que maneira, sob o império do egoísmo, fundar um sistema que requeira a abnegação em um sentido tão amplo que tenha por princípio essencial a solidariedade de todos para cada um e de cada um para com todos?”. E o espiritismo afinal quer o quê, senão isso a fim de contas? Bem... Mas a que experiência se refere Kardec? 1) à dos socialismos revolucionários, que bem se resume nestas palavras do prof. José Paulo Netto: “(...) as insurreições proletárias de 1848 e sua repressão pela burguesia (associada à nobreza que ela viera de derrocar) liquidaram as ‘ilusões heroicas’ da Revolução Francesa e puseram a nu o caráter opressor da organização social dela derivada”;[3] 2) à dos socialismos utópicos; em especial, de Saint-Simon, Fourier e Owen, a quem o socialismo científico de Marx e Engels, por sinal, deve importantes matizes — exploração do homem pelo homem, abolição do Estado, princípio distributivista segundo capacidades e necessidades etc. —, mas nos quais, segundo estes últimos, havia muitas deficiências teóricas, tais como: 1) “da mesma maneira que os enciclopedistas, não se propõem emancipar primeiramente uma classe determinada, mas, de chofre, toda a humanidade”;[4] 2) “comunismo ainda totalmente rude e irrefletido” por ser “apenas a expressão consequente da propriedade privada”, no qual a “inveja e o desejo de nivelamento”, “pelo menos contra a propriedade mais rica”, repisam “a essência da concorrência”, conduzindo a um minimalismo representativo que “tem uma medida limitada determinada” e, desse modo, “nega a personalidade do homem”, donde, pois, nesse comunismo rude, “a negação abstrata do mundo inteiro da cultura e da civilização; o retorno à simplicidade não natural do ser humano pobre sem carências que não ultrapassou a propriedade privada, nem mesmo até ela chegou”;[5] 3) falta de uma análise econômica mais abrangente da propriedade privada como base da exploração capitalista; 4) essência apolítica, não reconhecimento da missão histórica do proletariado: ser o coveiro da sociedade de classes na ação revolucionária.[6]

Sem me deter, como Kardec, apenas na cogitação moral, dela farei antes uma âncora. Admitamos, pois, factível, por mais imponderável, a destruição do ascendente egoísta, que os espíritos predizem e para o que afirmam concorrer.[7] Ora; isso não equivaleria a um tipo de superação do sistema-mundo que, concentrador e periodicamente em crise por natureza, não comporta a solidariedade de todos para cada um e de um para com todos, porque a aprisiona na eventualidade altruísta que, se erigida em lei, implodiria aquele sistema? Para que “coisa”, em 1862, eram os homens formados e, mais que isso, para que “coisa” permanecem a ser formados? Kardec nem deixa de cogitá-lo doutras feitas, sobrelevando até a influência social no caráter humano, como se verá. Não sem motivos, divisa Marx em seu materialismo dialético-histórico: “(...) assim como a sociedade mesma produz o homem enquanto homem, assim ela é produzida por meio dele. (...) Acima de tudo é preciso evitar fixar (...) a ‘sociedade’ como abstração frente ao indivíduo. O indivíduo é o ser social”.[8] Inegavelmente, ao transformar nosso meio, somos por ele transformados; uma dialética, aliás, que a doutrina espírita não pretende negar, mas ampliar, somando-lhe o elemento espiritual intrínseco à natureza: este influi na matéria e vice-versa.[9] Em contrapartida ao discurso assaz idealista de 1862, passo a citar um Kardec mais dialético, que começa admitindo os primeiros versículos do evangelho comunista — o antagonismo entre classes, a opressão da lei e o império das influências mesológicas — e termina ordenando reformas sociais: 1) “haverá luta, luta sangrenta, de extermínio, porque são dois elementos” — a) classes mais elevadas sem sentimento do bem, só com o instinto do eu; b) classes inferiores, bem como raças mais fracas, ambas escravizadas — “dois elementos que têm interesses opostos e, para proteger os bens e as pessoas, serão necessárias leis; mas essas leis serão ditadas pelo interesse pessoal e não pela justiça; é o forte que as fará, em detrimento do fraco”;[10] 2) “por toda parte onde a lei consagra medidas injustas, contrárias à humanidade, as boas influências parciais ficam perdidas na multidão, como espigas isoladas em meio de espinheiros”;[11] 3) “com uma organização social previdente e sábia, o homem não padece necessidades senão por sua culpa; mas essas culpas são frequentemente o resultado do meio em que ele vive”;[12] 4) “quando se pensa na massa de indivíduos diariamente lançados na corrente da população, sem princípios, sem freios, entregues aos próprios instintos, não é de se admirar as consequências desastrosas desse fato”;[13] 5) “destruí nas leis, nas instituições, nas religiões, na educação, até os últimos vestígios, os tempos de barbárie e de privilégios, e todas as causas que mantêm e desenvolvem esses eternos obstáculos ao verdadeiro progresso, que se recebe, por assim dizer, desde a meninice e que se aspira por todos os poros na atmosfera social”.[14] Sem desprezo pelo que concorra à formação do caráter humano por via endógena, sempre posto por ele na primeira linha de ação, mais não propugna Kardec, nessas tomadas dialéticas, senão pelo que conduza, pari passu, ao fomento de um ciclo virtuoso de circunstâncias capazes de engendrar pessoas melhores, não só, mas também por via exógena; sobretudo mediante quanto venha minimizar a pressão, no indivíduo, do choque do egoísmo alheio, que leva muitos a se colocarem numa eterna defensiva, ciclo vicioso, pois, que os aferra, para além de sua virtual boa vontade, à imperfeição-mor de sua alma.[15] “Os números são frios.” “The time is money.” Etc. Etc. Nessa performance discursiva da Viagem em 1862, tão consequente com a doutrina moral espírita quanto conveniente ao rígido controle imperial dos discursos públicos, todos os comunismos são por Kardec submetidos ao mesmo signo reducionista de uma igualdade absoluta e permanente de bens, a ser de pronto estabelecida entre pessoas privadas de virtudes quase monásticas e sem mediação de nenhum interregno socialista. Assim, de fato, todo comunismo transparece, das utopias, a mais inviável. Já o de Marx não é ab-rupto ou pré-moldado: “O comunismo não é para nós um estado de coisas que deve ser instaurado, um ideal para o qual a realidade deverá se direcionar. Chamamos de comunismo o movimento real que supera o estado de coisas atual. As condições desse movimento [devem ser julgadas segundo a própria realidade efetiva] resultam dos pressupostos atualmente existentes”.[16] Este comunismo marxiano emerge resultante de uma transição da pré-história societária (a era da sociedade de classes, cuja última etapa seria o capitalismo) para o tempo da plena posse do controle do nosso destino, a vigência de uma associação na qual o livre desenvolvimento de cada um seja a condição do livre desenvolvimento de todos, garantido o livre desenvolvimento de toda capacidade natural.[17] O humano a ser fim absoluto, não meio descartável. Haverá ética mais sublime? E aí está, ansiada por um dos mais implacáveis mestres da modernidade ateia. O receituário dos comos, as profecias dos quandos ficaram ao encargo dos marxistas. O próprio Marx, que dizia não ser marxista, deixou apenas a crítica e o método constituintes de uma multidimensionalidade teórica singularmente unificadora, não respeitada senão pela ignorância mais obtusa. Para o economista J. Attali: “(...) ele foi o primeiro a apreender o mundo como um todo que é, ao mesmo tempo, político, econômico, científico e filosófico”.[18] Ainda assim, um proletariado que, por essência, tenha como destino a extinção de toda opressão ocasionada pela sociedade de classes — a do Estado, inclusive — não resulta da análise marxiana do capitalismo, por mais arguta; na verdade, é uma esperança de Marx inserida nessa análise.[19]

A despeito de sua clara interdição aos comunismos, Kardec viu neles o que certos espíritas não se permitem admitir: “o objetivo é louvável, sem contradita” e, seus pensadores, “bem-intencionados”. Na opinião do mestre, não seriam viáveis, principalmente, porque exigiriam “as virtudes morais no grau supremo”. Ora; dois gumes nessa lâmina. Sujeito histórico da era da incerteza, problematizo e opino livre de peias. Não tenho o tolo fetiche de uma neutralidade que nada mais seria senão pretensa. Ser ou não ser socialista, ou comunista, é uma opção; ser crítico do capitalismo é uma obrigação. Os comunismos dependeriam de virtudes num grau inexistente. E o capitalismo? Delas dependeria em que grau? Digo-o: zero. Ele as despreza. Lucro maximizado e concentrado é só ao que ele conduz. Acúmulo que finda sem capacidade distributiva e a gerar crises reincidentes. Por isso viceja, normativo, o açambarcamento dos supérfluos em prejuízo de a quem falta o indispensável; o esquecimento de toda lágrima que o culto das ambições fátuas não permite seja enxugada; o mau emprego de altas cifras que melhor se envidariam a disponibilizar o essencial a quem mesmo deste se encontra falto. Segundo as leis morais espíritas, só o necessário é útil; o supérfluo, nunca o é. O mérito espiritual está em resistir ao excesso, ao gozo das coisas inúteis; no sacrifício até do que seja necessário em favor de quem carece do bastante. Assim, o critério da verdadeira felicidade é olhar para baixo; não olhar para cima senão para elevar a alma ao infinito. O mínimo comum de felicidade relativa na Terra requer tão só a posse do necessário, a consciência tranquila e a fé no futuro, sendo o mais rico o de menos demandas e, verdadeiramente infeliz, só a quem falte o bastante à vida e à saúde do corpo.[20] Como conciliar essa moral mais que espírita: praticamente paleocristã, às formas de sociabilidade usurária do capitalismo? Segundo o prof. A. L. Mascaro, tais formas “se estruturam em relações de exploração, dominação, concorrência, antagonismo de indivíduos, grupos, classes e Estados, sendo o conflito e a crise suas marcas inexoráveis”.[21] Exatamente o que nos leva ao antológico A. Hauser: “(...) não foi toda a economia capitalista mera ilustração da teoria de Maquiavel? Não mostrou ela claramente que a realidade obedecia à sua própria e dura necessidade, que todas as ideias eram impotentes quando diante de sua implacável lógica, e que a única alternativa era submeter-se-lhe ou ser destruído por ela?”.[22] Não surpreende, pois, o nosso supremo grau, não de virtudes pacíficas da alma, mas de vícios beligerantes do corpo; o nosso calculado distanciamento do guia e modelo indicado à humanidade na orientação imperativa do kardecismo: “Vede Jesus”.[23] A meu juízo, o mesmo que disse: — Ai de vós, ricos! Honrados os pobres![24]

A crítica de Kardec aos comunismos lhes contradita a eficácia presente, mas, no âmbito das próprias crenças espíritas, não lhes desautoriza o eventual êxito futuro, senão terráqueo, extraterreno. Não nos conduz, o conjunto dessas crenças, na direção do sublime da virtude, do sacrifício do interesse pessoal pelo bem do próximo, sem segundas intenções?[25] Portanto, não nos leva em direção da abnegação mais completa da personalidade, do império da solidariedade, do perfeito estado da vida comunitária enfim? O choque de uma organização em que a sociabilidade só induz ao possuir, ao por força amealhar, instiga permanente defensiva; reproduz egoísmo; frustra as melhores formações em contrário. Será a caridade a brotar no coração daqueles que, crentes ou não, mais que talhados para competir e consumir, são antes a isso obrigados, sob pena de perecerem?[26] Entretendo e excitando o egoísmo e, dessa forma, intensificando uma necessária piora do mal, não é a civilização capitalista que trama sua ruína e, assim, sua transição a uma sociedade superior? A própria causa: egoísmo, não destrói seu efeito: capitalismo? Dizem-no, a seu modo, os guias kardecistas, o próprio Kardec e, bem antes, até Marx: “Quanto maior é o mal, mais hediondo se torna. Era preciso que o egoísmo produzisse muito mal, para que compreensível se fizesse a necessidade de extirpá-lo.”[27] — “O paroxismo de um mal é sempre o sinal de que chega ao seu fim.”[28] — “O lugar de todos os sentidos físicos e espirituais passou a ser ocupado pelo simples estranhamento de todos esses sentidos, pelo sentido do ter. A esta absoluta miséria tinha de ser reduzida a essência humana, para com isso trazer para fora de si sua riqueza interior”.[29] Os comunistas não levariam em conta senão a organização da vida material e, por isso, Kardec os acusa de construir um edifício começando pelo topo. No entanto, a própria filosofia espírita decreta, com relação à vida na matéria, a posse do necessário como mínimo indispensável à felicidade terrestre.[30] Marx, aliás, chama “rude”, “irrefletido”, “incompleto”, o comunismo para o qual “a posse imediata, física, lhe valha como o fim único da vida e da existência.”[31] Se uns negligenciariam o espírito, o outro subestimaria a matéria, sobretudo ante este seu otimismo profético: le spiritisme, par sa puissante révélation, vient donc hâter la réforme sociale: o espiritismo, por sua poderosa revelação, vem acelerar a reforma social. Kardec não sabia que o interesse pelo espiritismo permaneceria, sim, muito depois de sua morte, mas decrescente, não acelerando, concreta e estruturalmente, nenhuma reforma social. Ao contrário, o colonialismo europeu, francês em grande medida, viria a estar na base mesma de dois terríveis conflitos mundiais.[32] Impossível fora desmentir a diagnose quântica do essencial A. Bosi: “As almas e os objetos foram assumidos e guiados, no agir cotidiano, pelos mecanismos do interesse, da produtividade; e o seu valor foi se medindo quase automaticamente pela posição que ocupam na hierarquia de classe ou de status. Os tempos foram ficando — como já deplorava Leopardi — egoístas e abstratos. ‘Sociedade de consumo’ é apenas um aspecto (o mais vistoso, talvez) dessa teia crescente de domínio e ilusão que os espertos chamam ‘desenvolvimento’ (ah! poder de nomear as coisas!) e os tolos aceitam como ‘preço do progresso’”.[33]

Para além de identificar o espiritismo a qualquer sistema político-econômico, ressalto esse eterno desafio enfrentado pelos humanismos: a distância entre proposição e prática. No espiritismo não é diferente. Não parecem mais utópicas que a instauração de qualquer comunismo as soluções morais espíritas em pleno âmbito capitalista. Notadamente, essas soluções antagonizam o coração pulsante do sistema: o interesse pessoal; este rivaliza com o que é justo, e determina uma ordem jurídica feita para o mais forte em detrimento do mais fraco, como vimos o Kardec dialético escrever. O mestre também diz em 1862 que “a base da caridade é a crença; a falta de crença conduz ao materialismo, e o materialismo ao egoísmo.” Há uma prova final, no entanto, de que o espiritualismo seja necessariamente mais eficaz contra o egoísmo e o orgulho? Ou de que o materialismo conduza fatalmente a esses vícios radicais? Não existem adeptos de doutrinas materialistas, ou simples indiferentes, que sejam superiores em moral a adeptos do espiritismo, por exemplo? Se a crença é nosso móvel, basta que conduza ao bem de todos antes que só ao nosso.[34] Importará tanto assim que ela seja espiritualista? Será impossível querer o bem de todos, até com fervor, sem acreditar em Deus, ou no espírito? Procede altruisticamente, tão só por neles crer, todo espiritualista? Com respeitosa vênia, mestre: “A experiência aí está, diante de nossos olhos, para provar que eles” — Deus e o espírito — “não extinguem nem as ambições nem a cupidez”. Ateus comunistas são acusados de credulidade religiosa ao defenderem a igualdade e condenarem o aprofundamento das diferenças — não individuais, mas sociais —, o que espiritualistas nem sempre fazem e, por vezes, mesmo repelem. Não será um fato que a dose geralmente intensa de presunção da verdade entre crentes constitui sério obstáculo à fraternidade irrestrita? Não estaríamos mais livres de preconceitos sem as muletas de tantos vínculos fideístas a justificar nossas crenças nestas ou naquelas ações ou comportamentos, o mais das vezes, pouco ou nada executados? Substituiremos o fora da caridade não há salvação pelo fora da crença no espírito não há salvação? Não seria essa a mesma esteira do fora da verdade não há salvação, quiçá, do fora da Igreja não há salvação? Melhor quando o mestre assenta: 1) respeitar “todas as crenças, mesmo a incredulidade, que também é uma espécie de crença quando se preza o bastante para não chocar as opiniões contrárias” e, nessa medida, pode igualmente “brindar-nos com observações úteis”;[35] 2) não ser sinônimos nem sempre se acompanharem sensualismo e materialismo, “já que se veem espiritualistas por profissão e por dever que são muito sensuais, ao passo que há muitos materialistas bastante moderados em sua maneira de viver”.[36] Se a crítica de Kardec pretende apontar a causa presente da inviabilidade dos comunismos — o egoísmo —, o mesmo já não se aplicaria, repito, a um eventual estado mais avançado do gênero humano, em que, no próprio dizer dos guias kardecistas, despojados daquele vício, viveremos como irmãos, sem nos fazermos nenhum mal, auxiliando-nos uns aos outros, num sentimento de mútua solidariedade, em que o forte será amparo do fraco, nunca seu opressor e, por isso, não haverá a quem falte o indispensável, porquanto todos praticarão — que sintomático! — “a lei de justiça”.[37] A Terra configuraria, então, um mundo ditoso, no qual, enfim, o primeiro direito natural de todos, sem exceção, seria realmente “o de viver”,[38] não o de ser explorado por quem, num compromisso de má consciência típico das sociedades de classes, só se apropria dos frutos do trabalho de outrem a fim de acumulá-los para seus próprios herdeiros sem jamais fazer o bem a quem quer que seja;[39] por quem não amealha recursos, mesmo honestamente, para socorrer seus irmãos em humanidade, e sim apenas para locupletar-se, pretextando sempre suas necessidades pessoais e/ou exigências do que considera a sua posição; tudo findando, de ordinário, em ridículas extravagâncias.[40] Ao reportar-se à força dos bons pensamentos em comunhão sobre as massas, Kardec adentra a antessala de um tipo de comunismo, senão praticado, ao menos aspirado: “(...) pela comunhão de pensamentos, os homens se assistem entre si, e ao mesmo tempo assistem os espíritos e são por estes assistidos. As relações entre o mundo visível e o mundo invisível não são mais individuais, são coletivas, por isto mesmo são mais poderosas para o proveito das massas, como para o dos indivíduos. Numa palavra, estabelecem a solidariedade, que é a base da fraternidade. Ninguém trabalha para si só, mas para todos, e trabalhando por todos, cada um aí encontra a sua parte. É isto que o egoísmo não entende”.[41] Cinquenta e cinco anos antes do Outubro Vermelho de 1917 e com base em fracassos de certos experimentos utópicos, bem como das insurgências de 1848, a tese kardeciana quer sustentar que os comunismos são inviáveis, sobretudo, porque somos egoístas contumazes; no entanto, por efeito inverso, tacitamente admite que, justo por isso, o capitalismo tem prevalecido.[42] E a humanidade melhorada não melhoraria o próprio capitalismo? Ora; o sacrifício do interesse pessoal pelo bem de todos, sem pensamento oculto, é o sublime da virtude a que a doutrina espírita encoraja com suas leis morais.[43] Uma vez atingido e praticado largamente, não consagraria a extinção da sociabilidade capitalista e, por outra, a busca de qualquer comunismo ou gestão social? Qual é a crença espírita? Crê a doutrina numa elevação da Terra na hierarquia dos mundos, a fim de que seja habitação exclusiva de espíritos da segunda ordem da escala espírita, os que, quando encarnados, desconhecem orgulho, egoísmo, ambição, ódio, rancor, inveja ou ciúme; os que fazem o bem só pelo bem por serem de fato homens de bem, tomando sempre a defesa do fraco contra o forte e sacrificando seus interesses à justiça.[44] A não ser assim, restar-nos-ia tão só a esperança dos sucessos materiais, ou seja, o verniz de civilização; esse dos países desenvolvidos, em que os homens de bem, assim como nos países em desenvolvimento, ainda não suportam provas que lhes firam a corda do interesse pessoal, persistindo neles aquela serpente que lhes devora o coração: o egoísmo.[45]

A julgar certa a premissa evolucionária do kardecismo, não só o egoísmo será superado, outrossim, naturalmente atingido pela humanidade, um tipo comunismo. Não há nome mais correto para o que se lê no best-seller de Kardec: “Bem-aventurados os que são brandos, porque possuirão a Terra (...) Por aquelas palavras quis dizer [Jesus] que até agora os bens da Terra são açambarcados pelos violentos, em prejuízo dos que são brandos e pacíficos; que a estes falta muitas vezes o necessário, ao passo que outros têm o supérfluo. [Jesus] Promete que justiça lhes será feita, assim na Terra como no céu, porque serão chamados filhos de Deus. Quando a Humanidade se submeter à lei de amor e de caridade, deixará de haver egoísmo; o fraco e o pacífico já não serão explorados, nem esmagados pelo forte e pelo violento. Tal a condição da Terra, quando, de acordo com a lei do progresso e a promessa de Jesus, se houver tornado mundo ditoso, por efeito do afastamento dos maus”.[46] Ali, por fim, Kardec satisfaz plenamente Reza Aslan: “(...) o reino de Jesus — o Reino de Deus — era bem deste mundo”.[47] Afora os conteúdos espirituais, seria esse um horizonte afim de E. Bernstein, que pretendeu revisar Marx após a morte de Engels e, disso, resultou a ideia de que a revolução proletária seria um conceito anacrônico, porque a própria evolução da sociedade burguesa, por meio de reformas, progressivamente conduziria ao socialismo, sem rupturas, e do socialismo, ao comunismo. Justiça na Terra sem afrontas à do Céu. Darma praticado, karma zerado. Amém. Razão assiste, pois, a outro historiador estadunidense, J. W. Monroe: “(...) esta fusão da metafísica romântico-socialista e da epistemologia positivista era talvez a contribuição intelectual mais original de Kardec. Politicamente, O Livro dos Espíritos tinha uma inspiração no socialismo romântico, mas dispensou sua mensagem explicitamente revolucionária”.[48] Em nenhum passo desse clássico essa inspiração mais transparece que nestes dizeres: “(...) somente pode considerar-se a mais civilizada, na legítima acepção do termo, a nação onde exista menos egoísmo, menos cobiça e menos orgulho; onde os hábitos sejam mais intelectuais e morais do que materiais; onde a inteligência se puder desenvolver com maior liberdade; onde haja mais bondade, boa-fé, benevolência e generosidade recíprocas; onde menos enraizados se mostrem os preconceitos de casta e de nascimento, por isso que tais preconceitos são incompatíveis com o verdadeiro amor do próximo; onde as leis nenhum privilégio consagrem e sejam as mesmas, assim para o último, como para o primeiro; onde com menos parcialidade se exerça a justiça; onde o fraco encontre sempre amparo contra o forte; onde a vida do homem, suas crenças e opiniões sejam melhormente respeitadas; onde exista menor número de desgraçados; enfim, onde todo homem de boa vontade esteja certo de lhe não faltar o necessário”.[49] Quem sabe, se levarmos a sério Lacordaire: “Do vosso patrimônio, como do vosso trabalho, só uma coisa vos é permitido tirar em vosso proveito: o necessário; o resto cabe aos pobres. Eis a lei. (...) Velai pelo futuro de vossos filhos; preocupai-vos em lhes preparar dias calmos e tranquilos em meio a esse vale de lágrimas; mas jamais lhes ensineis a viver egoisticamente e a olhar como deles o que é de todos”.[50]




[1] O socialismo seria um lapso temporal, pós-revolucionário ou não, que conduziria ao comunismo; transição, portanto, em que a mais ampla democracia de massas extinguiria a sociedade de classes e seus fundamentos (sobretudo a propriedade privada dos meios de produção e o Estado), pondo fim à exploração do homem pelo homem e viabilizando, mediante livres associações de livres produtores, o desenvolvimento de um como condição do desenvolvimento de todos, a nova ordem social: o comunismo. O socialismo seria algo menos programático que analítico e crítico, ao contrário do comunismo. Talvez seja muito desconcertante para quem julga Marx o pai das atrocidades tidas e havidas como socialistas ou comunistas, mas a verdade é que, sobre a economia ou instituições econômicas do socialismo, bem como acerca da forma concreta da sociedade comunista, ele, deliberadamente, nada declarou de modo específico, senão que apenas uma sociedade socialista poderia construir a comunista. A primeira teoria sobre uma economia socialista centralizada, aliás, sequer partiu de um socialista: de Enrico Barone, economista italiano, em 1908. (Cf. NETTO, José Paulo. O Que É Marxismo. São Paulo: Brasiliense, 2009. HOBSBOWM, E. J. Como Mudar o Mundo. São Paulo: Schwarcz, 2011.) Em função da variedade de concepções desses conceitos, o plural é mais correto: comunismos, socialismos. Já o discurso kardeciano a que me refiro se encontra na brochura Viagem Espírita em 1862. Kardec reporta seus leitores a essa peça quando defende a doutrina das injúrias do bispo do Texas em sermão proferido na igreja de Saint-Nizier: — “O espiritismo vem destruir a família, aviltar a mulher, pregar o suicídio, o adultério e o aborto, preconizar o comunismo, dissolver a sociedade.” — Ao que responde o mestre: — “Temos necessidade de refutar semelhantes asserções? Não; basta remeter ao estudo da doutrina, à leitura do que ela ensina, que é o que se faz em toda parte. Quem poderá acreditar que pregamos o comunismo depois das instruções que demos a respeito no discurso publicado in extenso no relatório de nossa viagem em 1862? Quem poderá ver nas palavras seguintes uma excitação à anarquia, encontradas na mesma brochura, página 58: ‘Em todo o caso, os espíritas devem ser os primeiros a dar exemplo de submissão às leis, caso a isso sejam convocados’.” (Revista Espírita. Fev/1863: Sermões contra o espiritismo.) Obs.: Cf. cap. 22 deste trabalho: Resignação. 


[2] O Livro dos Espíritos, 101, 913 e 917. 


[3] NETTO, José Paulo. O Que É Marxismo. Os pressupostos da teoria social de Marx. p. 12. 


[4] ENGELS, F. Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico. 


[5] Manuscritos Econômico-Filosóficos. Propriedade privada e comunismo. São Paulo: Boitempo, 2012, p. 104. Obs.: Bem se vê que os espíritos que responderam ao n. 811 do livro que lhes traz o nome estão de acordo com o que, antes deles, escreveu Marx, em 1844. Como foi dito a Kardec, muitos se movem mais por ambição e inveja do que pela busca de menor desigualdade numa organização social que se quer assim mais justa. Marx critica essas pretensões comunistas porque integram um comunismo “ainda totalmente rude e irrefletido”, que “nega a personalidade do homem” e representa, assim, “a negação abstrata do mundo inteiro da cultura e da civilização”, sendo “um retorno à simplicidade não natural do ser humano pobre sem carências que não ultrapassou a propriedade privada, nem mesmo até ela chegou”. Ora; foi contra esse “comunismo antissocial” de “legislações conventuais” que “aniquilam brutalmente os indivíduos” que o espírito Erasto, assim como Marx, também se levantou. Falta a Marx a “solução” do espírito e da reencarnação. Mas já tarda a cidadania científica do espiritismo e a concretização da regeneração, em que os indivíduos depurados em sínteses de amor sejam a maioria do gênero humano. Ora; até espíritas são vistos com todos os indicativos do fascismo mais tosco. O fato é que o horizonte kardecista de uma civilização em que todos pratiquem a lei de justiça não se afigura hoje, concretamente, menos utópico do que qualquer comunismo. (Cf. MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. Propriedade privada e comunismo. São Paulo: Boitempo, 2012, p. 104. HOBSBOWM, Eric J. Como Mudar o Mundo. Cap. 5. O Manifesto Comunista. Cap 7. Marx e as formações pré-capitalistas. KARDEC, Allan. Revista Espírita. Out/1861. Epístola de Erasto aos Espíritas Lioneses.) 


[6] Razão pela qual escreveu L. Denis: “Eu me coloquei entre os socialistas. (...) Mas reprovo o socialismo materialista, que só semeia o ódio entre os homens e, por conseguinte, permanece infecundo e destrutivo, como se pode ver na Rússia. Sou evolucionista e não revolucionário”. (Socialismo e Espiritismo. Cap. VII. 1ª ed. Matão: O Clarim, 1982, p. 126.) Todavia, segundo Hobsbawm, o socialismo marxiano diferia dos predecessores utópicos, entre outras, justamente por inserir o socialismo no quadro de uma análise histórica evolucionista, tornando a sociedade socialista um produto do desenvolvimento histórico do próprio capitalismo. (Cf. HOBSBAWN, Eric J. Como Mudar o Mundo. Cap. 2. Marx, Engels e o socialismo pré-marxiano.) Saint-Simon, Fourier (franceses) e Owen (escocês) são postos por Marx e Engels (alemães) entre os fundadores de “sistemas socialistas e comunistas propriamente ditos”, que “compreendem bem o antagonismo das classes”, mas aos quais chamaram “crítico-utópicos”, porque “rejeitam toda ação política e, sobretudo, toda ação revolucionária; procuram atingir seu objetivo por meios pacíficos e tentam abrir um caminho ao novo evangelho social pela força do exemplo, com experiências em pequena escala e que naturalmente sempre fracassam.” (Manifesto Comunista. 3. O socialismo e o comunismo crítico-utópicos. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 66/7.) Diante da convergência da profissão de fé do fourierista M. Briancourt com o espiritismo — no que toca à metafísica e à moral —, o próprio Kardec chegou a dizer: “compreende-se que fourieristas e espíritas possam dar-se as mãos”. De fato, Charles Fourier, filósofo e economista morto em 1837, previu, já em 1826, a eclosão dos fenômenos espíritas modernos, crendo na alma e na reencarnação, inclusive. (Cf. KARDEC, Allan. Revista Espírita. Mar/1869. O espiritismo em toda parte.) Saint-Simon, filósofo e economista morto em 1825, cujas ideias são consideradas o embrião do pensamento socialista, é pioneiro no conceito de que a Revolução Francesa foi uma luta de classes e de que se deve condicionar o direito ao usufruto dos bens da sociedade a quem trabalha, defendendo por necessário o embate entre os que trabalham e os ociosos. Robert Owen, empresário morto em 1858, instituiu jornada de 10h30min a seus empregados — à época eram comuns 14h —, bem como berçários e escolas-modelo aos filhos destes. Fundou nos Estados Unidos, em 1825, a comunidade Nova Harmonia; fracassando, retornou à Grã-Bretanha em 1829. Segundo W. Rodrigues: “Owen converteu-se ao espiritismo, fundando na Inglaterra o primeiro centro espírita daquele país. Seu filho, R. D. Owen, é célebre escritor espírita, autor de vários clássicos, entre os quais Região em Litígio entre este Mundo e o Outro”. (Viagem Espírita em 1862. 2ª ed. Matão: O Clarim, s/d, p. 84/5.) Com efeito, dos três pensadores citados, só R. Owen era por Marx e Engels chamado “comunista”. (Cf. HOBSBOWM, Eric J. Como Mudar o Mundo. Cap. 2. Marx, Engels e o socialismo pré-marxiano.) Sobre Owen, assenta Engels em seu clássico de 1892: “(...) um homem cuja pureza quase infantil tocava às raias do sublime e que era, ao lado disso, um condutor de homens como poucos. Robert Owen assimilara os ensinamentos dos filósofos materialistas do século XVIII, segundo os quais o caráter do homem é, de um lado, produto de sua organização inata e, de outro, fruto das circunstâncias que envolvem o homem durante sua vida, sobretudo durante o período de seu desenvolvimento (...) O avanço para o comunismo constitui um momento crucial na vida de Owen. Enquanto se limitara a atuar só como filantropo, não colhera senão riquezas, aplausos, honra e fama. Era o homem mais popular da Europa. Não só os homens de sua classe e posição social, mas também os governantes e os príncipes o escutavam e o aprovavam. No momento, porém, em que formulou suas teorias comunistas, virou-se a página. Eram precisamente três grandes obstáculos, os que, segundo ele, se erguiam em seu caminho da reforma social: a propriedade privada, a religião e a forma atual do casamento (...) E não ignorava ao que se expunha atacando-os: à execração de toda a sociedade oficial e à perda de sua posição social. Mas isso não o deteve em seus ataques implacáveis contra aquelas instituições, e ocorreu o que ele previa. Desterrado pela sociedade oficial, ignorado completamente pela imprensa, arruinado por suas fracassadas experiências comunistas na América, às quais sacrificou toda a sua fortuna, dirigiu-se à classe operária, no seio da qual atuou ainda durante trinta anos. Todos os movimentos sociais, todos os progressos reais registrados na Inglaterra em interesse da classe trabalhadora, estão ligados ao nome de Owen”. (Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico.) 


[7] Observe-se este interessante contraponto de Engels: “As concepções dos utopistas dominaram durante muito tempo as ideias socialistas do século XIX, e em parte ainda hoje as dominam. Rendiam-lhes homenagens, até há muito pouco tempo, todos os socialistas franceses e ingleses e a eles se deve também o incipiente comunismo alemão, incluindo Weitling. Para todos eles, o socialismo é a expressão da verdade absoluta, da razão e da justiça, e é bastante revelá-lo para, graças à sua virtude, conquistar o mundo. E, como a verdade absoluta não está sujeita a condições de espaço e de tempo nem ao desenvolvimento histórico da humanidade, só o acaso pode decidir quando e onde essa descoberta se revelará. Acrescente-se a isso que a verdade absoluta, a razão e a justiça variam com os fundadores de cada escola; e como o caráter específico da verdade absoluta, da razão e da justiça está condicionado, por sua vez, em cada um deles, pela inteligência pessoal, condições de vida, estado de cultura e disciplina mental, resulta que nesse conflito de verdades absolutas a única solução é que elas vão acomodando-se umas às outras. E, assim, era inevitável que surgisse uma espécie de socialismo eclético e medíocre, como o que, com efeito, continua imperando ainda nas cabeças da maior parte dos operários socialistas da França e da Inglaterra: uma mistura extraordinariamente variegada e cheia de matizes, compostas de desabafos críticos, princípios econômicos e as imagens sociais do futuro menos discutíveis dos diversos fundadores de seitas, mistura tanto mais fácil de compor quanto mais os ingredientes individuais iam perdendo, na torrente da discussão, os seus contemos sutis e agudos, como as pedras limadas pela corrente de um rio. Para converter o socialismo em ciência era necessário, antes de tudo, situá-lo no terreno da realidade”. (Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico.) 


[8] Manuscritos Econômico-Filosóficos (1844). Propriedade privada e comunismo. São Paulo: Boitempo, 2012, p. 106/7. Mais tarde, Marx escreve: “O modo de produção da vida material condiciona o processo em geral de vida social, político e espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina a sua consciência”. (Para a Crítica da Economia Política, 1859. Prefácio. Cf. NETTO, José Paulo. O Que É Marxismo. Uma teoria da sociedade burguesa. p. 26.) Uma leitura superficial induziria ao erro de que restaria, assim, negado o livre-arbítrio ou a capacidade humana de autotransformação. O que Marx pensa é que ambos não ocorrem abstraídos os fatores circunstanciais em que se verificam nem tampouco, nesse ínterim, deveriam eximir-se de alterá-los. Já em 1845, ele critica a rudeza do mecanicismo e até confere papel-chave à educação e ao educador: “A doutrina materialista sobre a modificação das circunstâncias e da educação esquece que as circunstâncias são modificadas pelos homens e que o próprio educador tem de ser educado. (...) A coincidência entre a alteração das circunstâncias e a atividade ou automodificação humanas só pode ser apreendida e racionalmente entendida como prática revolucionária”. (Ad Feuerbach. In A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo, 2014, pp. 533/34.) Marx e Engels creem que não há espírito, que o homem se deve, basicamente, “a uma determinada forma social, a determinadas condições de produção e intercâmbio.” (Ad Feuerbach. In A Ideologia Alemã. Boitempo, 2014. p. 250, a.) No entanto, como se viu, apostam numa dialética que não só promoveria como também manteria uma ordem superior à atual. Assim, os próprios proletários comunistas, erguidos ao poder em sua revolução, não continuariam encarnando os velhos paradigmas burgueses. Escrevem Marx e Engels: “(...) eles sabem muito bem que somente sob circunstâncias transformadas poderão deixar e ser ‘os velhos’ e, por essa razão, estão decididos a modificar essas circunstâncias na primeira oportunidade. Na atividade revolucionária, o transformar a si mesmo coincide com o transformar as circunstâncias”. (Ad Feuerbach. In A Ideologia Alemã. Boitempo, 2014. p. 209.) Isso aplicado ao kardecismo se formularia assim: Ao me transformar moralmente, ao transformar a mim mesmo, devo fazer que esse movimento de alma impacte socialmente, transforme circunstâncias para que nasça um ciclo estruturalmente virtuoso; caso contrário, essa boa influência, restrita a um não impacto ou a um pífio impacto social, mais se assemelha à própria imagem kardeciana da espiga dourada no meio dos espinheiros, oriunda do comentário ao n. 521 de O Livro dos Espíritos. Sempre me restará, claro, a promessa, apesar de postergada ao infinito, da regeneração deste mundo ou, enquanto não o vejo nessas condições, quiçá do meu eventual ingresso nalgum outro em que tal regeneração já exista concretamente ou, o que é menos provável ainda, uma situação espiritual liberta da necessidade de uma encarnação qualquer. 


[9] PIRES, J. Herculano. Espiritismo Dialético. In MARIOTTI, H. Dialética e Metapsíquica. Prefácio. Édipo, 1951. A Fagulha, 1971. 


[10] Revista Espírita. Mar/1858: Júpiter e alguns outros Mundos. 


[11] O Livro dos Espíritos, 521. 


[12] O Livro dos Espíritos, 930. 


[13] O Livro dos Espíritos, 685. 


[14] Obras Póstumas. Liberdade, igualdade, fraternidade. Obs.: Chamaram-me a atenção semiótica a imperatividade manifesta pelo verbo destruir e a impaciência implícita no adjetivo eternos. 


[15] O Livro dos Espíritos, 917. Obs.: O autor de além-túmulo dirá noutro livro de Kardec: “A lei de amor substitui a personalidade pela fusão dos seres; extingue as misérias sociais. Ditoso aquele que, ultrapassando a sua humanidade, ama com amplo amor os seus irmãos em sofrimento”. E mais: “Pobres irmãos! o vosso afeto vos torna egoístas; o vosso amor se restringe a um círculo íntimo de parentes e de amigos, sendo-vos indiferentes os demais. Pois bem! para praticardes a lei de amor, tal como Deus o entende, preciso se faz chegueis passo a passo a amar a todos os vossos irmãos indistintamente”. (O Evangelho segundo o Espiritismo, XI: 8-9.) 


[16] A Ideologia Alemã. Feuerbach e História. Nov/1845-abr/1846. p. 38, a. Obs.: Como já disse, Marx, em 1844, critica o comunismo “ainda totalmente rude e irrefletido”, em que, p. ex.: “a posse imediata, física, lhe vale como a finalidade única da vida e da existência”; “a comunidade é apenas uma comunidade do trabalho e da igualdade do salário que o capital comunitário, a comunidade enquanto capitalista universal, paga”; sendo, “portanto, apenas uma forma fenomênica da infâmia da propriedade privada que quer se assentar como a coletividade positiva”; esse comunismo que, “ainda de natureza política, democrático ou despótico; com supressão do Estado, mas simultaneamente ainda incompleto, sempre ainda com a essência afetada pela propriedade privada, ou seja, pelo estranhamento do ser humano.” Já para Marx, o fenômeno comunista é mais transversal: “(...) apropriação efetiva da essência humana pelo e para o homem (...) retorno do homem para si enquanto homem social, isto é, humano. (...) enquanto naturalismo consumado = humanismo, e enquanto humanismo consumado = naturalismo. Ele é a verdadeira dissolução do antagonismo do homem com a natureza e com o homem; a verdadeira resolução do conflito entre existência e essência, entre objetivação e autoconfirmação, entre liberdade e necessidade, entre indivíduo e gênero. É o enigma resolvido da história e se sabe como esta solução. O movimento total da história é, assim como o seu [do comunismo] ato efetivo de geração — o ato de nascimento da sua existência empírica — também, para a sua consciência pensante, o movimento concebido e sabido do seu vir a ser (...) O comunismo é (...) o momento efetivo necessário da emancipação e da recuperação humanas para o próximo desenvolvimento histórico (...) a figura necessária e o princípio enérgico do futuro próximo, mas o comunismo não é como tal o termo do desenvolvimento humano — a figura da sociedade humana”. (Cf. Manuscritos Econômico-Filosóficos. Propriedade privada e comunismo. p. 103/5 e 114.) 


[17] Cf. HOBSBOWM, Eric J. Como Mudar o Mundo. Cap. 2. Marx, Engels e o socialismo pré-marxiano. Cap. 5. O Manifesto Comunista. 


[18] Cf. HOBSBOWM, E. J. Como Mudar o Mundo. Cap. 1. Marx hoje. 


[19] NETTO, José Paulo. O Que É Marxismo. Uma teoria da sociedade burguesa. HOBSBOWM, Eric. J. Como Mudar o Mundo. Cap. 5. O Manifesto Comunista. Cap. 7. Marx e as formações pré-capitalistas. 


[20] O Livro dos Espíritos, 704, 705, 717, 720, 896, 922, 923, 926 e 927. 


[21] MASCARO, A. L. Estado e Forma Política. 5.1. Capitalismo, Estado e Regulação. São Paulo: Boitempo, 2013. 


[22] História Social da Arte e da Literatura. Cap. V, n. 6. A idade do realismo político. Martins Fontes, 2000, p. 389. 


[23] O Livro dos Espíritos, 625. 


[24] Makarios é a palavra que foi traduzida “bem-aventurados” quando, em verdade, significa “honrados”. (Cf. FARIA, Lair Amaro dos S. “Quão honoráveis sois vós, meus discípulos, porque perdestes a honra”. O contexto cultural dos macarismos em Q. In: 1.º Simpósio Regional - Bíblia e Ciências Humanas, 2007, São Paulo. ABIB, 2007.) 


[25] O Livro dos Espíritos, 893 e 916. 


[26] O Livro dos Espíritos, 914 e 917. 


[27] O Livro dos Espíritos, 916. 


[28] Viagem Espírita em 1862. Discurso III. Pronunciado nas reuniões gerais dos espíritas de Lyon e Bordeaux. 


[29] Manuscritos Econômico-Filosóficos (1844). Propriedade privada e comunismo, p. 108/9. 


[30] O Livro dos Espíritos, 922. 


[31] Manuscritos Econômico-Filosóficos (1844). Propriedade privada e comunismo, p. 103. 


[32] Dois anos antes, também num discurso público, Kardec afirmara: “Compreendeis todos, pelo que tendes sob os olhos e pelo que sentis em vós mesmos, que dia virá em que o espiritismo deverá exercer uma imensa influência sobre a estrutura social”. (Revista Espírita. Out/1860. Banquete oferecido pelos espíritas lioneses ao sr. Allan Kardec, 19 de setembro de 1860.) 


[33] O Ser e o Tempo da Poesia. Companhia das Letras, 2000, pp. 164-165. 


[34] O Livro dos Espíritos, 629. 


[35] Revista Espírita. Fev/1858. A floresta de Dodona e a estátua de Memnon. 


[36] Revista Espírita. Fev/1869. Estatística do Espiritismo. 


[37] O Livro dos Espíritos, 916. 


[38] O Livro dos Espíritos, 880. 


[39] O Livro dos Espíritos, 900. 


[40] O Livro dos Espíritos, 883, 923, 1001. 


[41] Revista Espírita. Dez/1868. O espiritismo é uma religião? 


[42] Se não fez profissão de fé comunista, Kardec, por sua vida e pensamento, tampouco foi entusiasta do liberalismo. Como não lembrar destes comentários exarados em sua obra espírita inaugural: “(...) entre os homens, as posições sociais guardam, frequentemente, relação inversa com a elevação dos sentimentos morais. Herodes era rei e Jesus, carpinteiro. (...) A riqueza e o poder fazem nascer todas as paixões que nos prendem à matéria e nos afastam da perfeição espiritual. Foi por isso que Jesus disse: ‘Em verdade vos digo que é mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus’”. (O Livro dos Espíritos, 194 e 816.) Segundo J. W. Monroe, ph.d. em história da Europa pela Universidade de Yale: “(...) pequenos grupos de escritores estavam adaptando as ideias do espiritualismo americano ao contexto francês submetendo-as a uma variedade de modificações estratégicas, frequentemente procurando ou associando-as com as correntes mais radicais de 1848, ou as assimilando na estrutura católica. Rivail não era exclusivamente movido por um ou outro desses pontos de vista. Ao contrário, seu temperamento e educação parecem tê-lo disposto a pesquisar por uma nova síntese. Nascido em Lyon de uma família de advogados, cresceu católico, mas educado na famosa e progressista escola de Johann Heinrich Pestalozzi em Yverdun, Suíça, Rivail reuniu um respeito por dignidade profissional e um gosto por moderação com uma tardia atração para os valores do socialismo romântico. Depois de completar seus estudos e serviços militares em 1832, ele e sua esposa fundaram uma escola técnica privada em Paris, que fechou depois de alguns anos. Ele tornou-se um contador independente, e no início dos anos 50 do século dezenove estava ganhando suficiente dinheiro para viver a vida confortável de um burguês”. (A Travessia: Allan Kardec e a Transnacionalização do Espiritualismo Moderno. Do espiritualismo ao espiritismo. São Vicente (SP): PENSE, 2014, p. 25/6.) Correspondem, de fato, o pensamento e a vida do mestre, aos de um pequeno-burguês progressista cristão, como vimos e podemos reiterar ainda mais: “(...) o principio egoísta e tudo que dele decorre são o que há de mais tenaz no homem e, por conseguinte, de mais difícil de desarraigar. Toda gente faz voluntariamente sacrifícios, contanto que nada custem e de nada privem. Para a maioria dos homens, o dinheiro tem ainda irresistível atrativo e bem poucos compreendem a palavra supérfluo quando de suas pessoas se trata. Por isso mesmo, a abnegação da personalidade constitui sinal de grandíssimo progresso”. (O Livro dos Espíritos. Conclusão. VII.) — “(...) depois dos fanáticos, os mais refratários às ideias espíritas são os sensualistas e as pessoas cujos únicos pensamentos estão concentrados nas posses e nos prazeres materiais, seja qual for a classe a que pertençam, o que independe do grau de instrução. Em resumo, o espiritismo é acolhido como um benefício pelos que ele ajuda a suportar o fardo da vida, e é repelido ou desdenhado por aqueles a quem prejudicaria no gozo da vida”. (Revista Espírita. Jan/1869. Estatística do Espiritismo.) — “(...) a calma e a tranquilidade se encontram mais particularmente nas posições modestas, quando assegurado o bem-estar da vida. Aí quase não há ambição; contentam-se com o que têm, sem se atormentarem em o aumentar, correndo os riscos aleatórios da agiotagem ou da especulação. São os que chamamos despreocupados, falando relativamente; por pouco haja neles elevação de pensamento, ocupam-se de bom grado das coisas sérias; o espiritismo lhes oferece um atraente assunto de meditação, e o aceitam mais facilmente do que aqueles a quem o turbilhão do mundo suscita uma febre contínua”. (Revista Espírita. Fev/1869. Estatística do Espiritismo.) — “Quem quer que outrora tenha visto a nossa intimidade e a veja hoje, pode atestar que nada mudou em nossa maneira de viver depois que passei a ocupar-me do espiritismo. Ela é agora tão simples quanto era outrora. Então é certo que os meus lucros, por enormes que sejam, não servem para nos dar os prazeres do luxo. (...) Em todos os tempos temos tido de que viver, muito modestamente, é certo, mas o que teria sido pouco para certa gente[, a nós] nos bastava, graças aos nossos gostos e aos nossos hábitos de ordem e de economia. À nossa pequena renda vinha juntar-se o produto das obras que publiquei antes do espiritismo, e o de um modesto emprego que tive de deixar quando os trabalhos da doutrina absorveram todo o meu tempo”. (Revista Espírita. Dez/1868. Constituição Transitória do Espiritismo. II.) 


[43] O Livro dos Espíritos, 629 e 893. 


[44] O Livro dos Espíritos, 107, 918 e 1019; O Evangelho Segundo o Espiritismo, XVII, 3. 


[45] O Livro dos Espíritos, 717, 727 e 895. Obs.: Em paralelo, pergunto a que matriz de pensamento pertence o espiritismo. À do positivismo. Ora; segundo emérito professor da UFRJ, José Paulo Netto: “(...) ao contrário do que asseguram muitos estudiosos, o século 19 não está superado: as principais matrizes intelectuais nele emergentes estão mais vivas e atuantes que nunca — num polo, a inaugurada por Marx; noutro, a estabelecida pelo positivismo”. E mais: “(...) o desenvolvimento dessa matriz positivista (...), tendo sempre, franca ou veladamente, Marx como interlocutor, não excluiu a continuidade e a renovação das tendências místicas e mitologizantes que se abrigavam na gênese do pensamento conservador. Aparentemente contrapostas, a matriz positivista e essas posturas irracionalistas dão-se as mãos para prover a sociedade burguesa de legitimações ideológicas”. (O Que é Marxismo, p. 20.) Pergunto-me se não é essa a gênese do conservadorismo espírita, apesar do progressismo de sua doutrina moral, tomada aos Evangelhos cristãos. Ainda assim, não finda o espiritismo, sobretudo por sua metafísica das provas e expiações, por bem servir ao conjunto das forças legitimadoras de uma sociedade dada? Será acaso que seus adeptos estejam ainda hoje entre os mais bem pagos e escolarizados? Digo-o não só pelo que constatam órgãos estatísticos, mas até por causa do que se lê na nota 110 de uma edição alemã d’O Capital, p. 197: “Depois da derrota das revoluções de 1848-49, começou na Europa um período da mais obscura política reacionária. Enquanto, nesse tempo, as rodas aristocráticas e também as burguesas se entusiasmaram pelo espiritismo, especialmente por fazer a mesa andar, desenvolveu-se na China um poderoso movimento de libertação antifeudal, particularmente entre os camponeses, que entrou para a história como a revolução do Taiping”. 


[46] O Evangelho segundo o Espiritismo, IX, 5. 


[47] Zelota. A vida e a época de Jesus de Nazaré. 11. Quem vós dizeis que eu sou? Trad.: Marlene Suano. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. 


[48] Crossing Over: Allan Kardec and the Transnationalization of Modern Spiritualism. Obs.: Moroe lista na matriz kardeciana do espiritismo a influência de quarto elementos que a distinguem da estadunidense e da inglesa: “(...) o legado do pensamento visionário cosmológico e moral derivado dos escritores socialistas românticos franceses tais como Charles Fourier, Pierre Leroux e Henri Reynaud; uma concepção teleológica do desenvolvimento histórico e o valor do empirismo baseado no positivismo de Auguste Comte; um ambiente religioso ortodoxo dominado pela Igreja católica, que mantinha ligações próximas com o Estado; e um governo autoritário que impunha controles rigorosos sobre o discurso público, especialmente em matérias concernentes à política, à economia e à religião”. 


[49] O Livro dos Espíritos, 793. 


[50] Revista Espírita. Ago/1865. A Chave do Céu. Lacordaire (espírito). Por Allan Kardec.