6. Jesus de Nazaré.

6. Jesus de Nazaré. 

Muito se fala em reforma íntima, interior. Que seja. A expressão, contudo, é insuficiente a propósitos demasiado transversais como os da doutrina espírita. Simples reformas não operam mudanças substantivas, cuja significação anime em definitivo o fomento de uma nova sensibilidade coletiva, que é, sem dúvida, a meta suprema do legado daquele camponês judeu do Mediterrâneo. Os ensinos e a vida de Jesus em tudo se distanciam desses simulacros comportamentais, de meras exibições de prosélito egocêntrico, que as religiões do oportunismo capitalista ousam chamar de conversões. Há que considerar os sentidos mais originários das falas daquele magnético iletrado de Nazaré, que se reportam a nossa mudança de mente, à passagem de nossos níveis de consciência a percepções mais apuradas do existir, mediante a compreensão da necessidade de enfrentarmos o coexistir segundo sua revolucionária proposta: devemos fazer aos demais aquilo que queremos nos façam. 

Não há verdadeiro amor a Deus que não se faça amor ao próximo; do contrário, não haverá amor e, mais ainda: já não existirá Deus em qualquer cristão de fato. Para tanto, são precisos movimentos de grande profundidade no ser anímico, que o conduzam para além da face animal, da mecânica física e da aparência perispiritual, e lhe proporcionem surpreender-se nesse poder de constante transformação, fundamentalmente moral e espiritual, por influência de nossa identidade perene em sua incorruptível transcendência, de divina natureza. Todos somos filhos do Altíssimo! Esses movimentos de grande profundidade no espírito não se verificam de um momento inusitado para outro de simples capricho. A reencarnação é o processo natural que opera essa transformação gradativa da consciência dos seres imortais, em âmbitos de especialíssimos estados, cada vez mais identificados com nossa filiação indissimulável, até que nos sobrevenha aquela plenitude definitiva, destinada às criaturas em sua realizável perfeição: a angelitude real, donde não se decai. 

A providência mesma se nos manifesta. Dizem os espíritos-guias da doutrina espírita, que Jesus é o tipo mais perfeito que Deus nos ofereceu para guia e modelo.[1] Não se há de tratar de um guia cego, modelo ectoplásmico neodocetista, distante de nossas vidas precárias. Decerto conhece o caminho pelo qual nos enveredou com sua entrada neste mundo de sangue e água, pele e ossos. Veio para dar testemunho da verdade, e esta mais não era que a plenitude espiritual, sempre capaz de transformar, impactar também a vida terrena. No mundo teremos tribulações, mas tenhamos bom ânimo, pois o mestre é vitorioso nos sistemas de coisas pelo menos há milhões anos. Não se distraiu à margem da longa estrada; veio até nós para que a trilhemos com decisão. Conheceremos a verdade e esta nos tornará livres se permanecermos no Caminho daquele que encarnou o amor perfeito de todo o bem; daquele que assumiu para si que o que se faça ao menor de seus irmãos a ele mesmo estará sendo feito. Sim, ao menos uma vez, o mais simples foi visto como o mais importante, lembrando dizeres de saudoso poeta dos anos 1980, exaltada desse modo a lei de justiça, amor e caridade. 

Para além disso, seria cristologia. Bem... Pastorino dizia que, sim, o “Pai” era só um espírito, o guia de Jesus; ele se baseia numa tradição de Hebreus e assevera que esse ser era o mítico Melquisedeque. Ramatis pensa mais ou menos o mesmo, que era o Cristo da Terra que inspirava o Galileu e, portanto, Jesus não era Cristo. Kardec não aceitou tais hipóteses e, já em 1863, criticou um padre por este ter de Jesus uma visão de simples criatura em provação, necessitada dos sofrimentos para atingir sua glória espiritual, que ele, Kardec, supunha já conquistada antes de sua vinda ao mundo. A verdade? Não sei. Kardecista, tendo a pensar com Kardec as questões exclusivamente espirituais. Mas não cegamente. Kardec não podia saber mais sobre isso que qualquer teólogo. Valer-me do fato de sua inspiração pelo Espírito da verdade é novo dogma de fé. Serve para mim. Eu creio. Todavia, cada um na sua e sempre com alguma coisa em comum, lembrando aquela antiga propaganda de cigarros. 

As tradições não são pacíficas. Até Jesus teria precisado de uma forcinha angelical segundo Lucas. Mesmo o Espírito da verdade a menciona no best-seller da codificação espírita.[2] E Kardec? Em A Gênese, diz que só de Deus vinham inspirações a Jesus, por ser um espírito puro. Precisaria, pois, nessa condição, da inspiração de um semelhante, dado que, segundo ainda o mestre espírita, Jesus, mesmo num corpo físico, ipsis verbis: “dominava de modo absoluto a matéria”? Ainda que sem se referir àquela tradição diretamente, certo que essa opinião kardeciana a inviabiliza. Noutro flanco, seu Estudo da Natureza do Cristo, em Obras Póstumas, utiliza a tradição de sofrimento no famoso horto das Oliveiras para ressaltar a humanidade de Jesus em contraposição à sua proclamada divindade. Nesse viés, já lhe interessou um domínio, digamos, menos absoluto da matéria do corpo de Cristo. A crença é que decide. Sempre. E sequer há o que perdoar nisso. Humano, demasiadamente humano. 

Fundamental recuperar essa dimensão em Jesus. Ora; o texto correto da bíblia é: “Devolvei a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. De Deus, para os judeus daquele contexto histórico, era a terra que lhes fora expropriada pelo conquistador romano. Jesus, pois, como qualquer judeu, queria sua terra livre de invasores. E deixou, pacificamente, bem dado o recado. Este Jesus, porém, foi aclimatado, uma desjudaização proporcional a sua europeização, que o transformou no meigo rabi de um reino exclusivamente espiritual, erigido sobre uma fuga da vida terrena quando, na verdade, a própria Terra é recompensa prometida aos pacificadores. A doutrina espírita, igualmente, ensina uma articulação de evoluções, espiritual e material. É contra isso que nosso atual tipo de sociedade e seus meios de produção e acumulação se colocam flagrantemente. Urge reconhecê-lo. Tudo mais é aquiescer e capitular. Seja teu falar sim, sim; não, não. Porque não se pode servir a dois senhores; a Deus e às riquezas. O capitalismo estampa no seu nome a quem serve. 


[1] O Livro dos Espíritos, 625. 

[2] O Evangelho segundo o Espiritismo, VI, 6: “Venho instruir e consolar os pobres deserdados. Venho dizer-lhes que elevem a sua resignação ao nível de suas provas, que chorem, porquanto a dor foi sagrada no Jardim das Oliveiras; mas que esperem, pois que também a eles os anjos consoladores lhes virão enxugar as lágrimas”. (Cf. Lucas 22:43.)