17. Mediunidade.


17. Mediunidade. 

Kardec leciona no seu Livro dos Médiuns, n. 159, que “toda pessoa que sente a influência dos espíritos, em qualquer grau de intensidade, é médium.” Não diria, portanto, que todas as pessoas sentem isso, do que se conclui que nem todas seriam médiuns. A seguir, sentencia que “essa faculdade é inerente ao homem, por isso mesmo não constitui privilégio”, do que já se poderia supor que todo mundo é médium. Segue para assegurar ainda que seriam “raras as pessoas que não a possuem pelo menos em estado rudimentar”, do que se volta, de novo, a concluir que nem todos seriam médiuns. Noutra conclusão, escreve o mestre: “Pode-se dizer, pois, que todos são mais ou menos médiuns”, donde se depreende que ele passa a desconsiderar a parcela mínima que não possui nem rudimentos de mediunidade, preferindo generalizar a faculdade. Adiante, contudo, torna a restringir a qualificação de médium, explicando que, “usualmente, se aplica somente aos que possuem uma faculdade mediúnica bem caracterizada, que se traduz por efeitos patentes de certa intensidade, o que depende de uma organização mais ou menos sensitiva.” Esse é o texto. E fato é que, baseados tão só nele, poderemos sustentar que todos seríamos médiuns ou, por outra, que nem todos o seríamos, e, ainda assim, sempre estaremos com relativa razão. Doutro lado, se usualmente seriam médiuns os que possuem uma faculdade bem caracterizada e, além disso, considerada a existência de raros indivíduos que nem mesmo num estado rudimentar a possuiriam, mais coerente é, pois, que se diga: — Não, nem todos somos médiuns. Potencial mediúnico, haveria em todos nós. Mas tecnicamente, o crucial é que sempre dependeria da “disposição orgânica” que caracterizaria toda condição de médium,[1] disposição que não, definitivamente, nem todos a possuiríamos. Por isso, Kardec ensina que “não se podem designar pelo nome de médium as pessoas que, nenhuma faculdade mediúnica possuindo, só produzem certos efeitos por meio da charlatanaria.”[2] O mesmo se verifica quando o mestre pondera: “Para que serviriam hoje médiuns pagos, desde que qualquer pessoa, se não possui faculdade mediúnica, pode tê-la nalgum membro da sua família, entre seus amigos, ou no círculo de suas relações?”.[3] Em O Livro dos Espíritos, n. 450-a, aprende-se que a dupla vista, faculdade que também se presta a fatos mediúnicos, depende da organização física, pois haveria “organizações que se lhe mostram refratárias.” E a esta pergunta de Kardec: “A suspensão da faculdade não implica o afastamento dos espíritos que habitualmente se comunicam?”, respondem: “De modo algum. O médium se encontra então na situação de uma pessoa que perdesse temporariamente a vista, a qual, por isso, não deixaria de estar rodeada de seus amigos, embora impossibilitada de os ver. Pode, portanto, o médium e até mesmo deve continuar a comunicar-se pelo pensamento com seus espíritos familiares e persuadir-se de que é ouvido. Se é certo que a falta da mediunidade pode privá-lo das comunicações ostensivas com certos espíritos, também certo é que não o pode privar das comunicações morais”.[4]

Tal foi a razão pela qual Kardec, querendo afastá-la do signo do privilégio, disse que, sim, todos possuiriam mediunidade, embora também haja deixado claro que, não, nem todos têm a disposição orgânica para sua manifestação. Na falta da mediunidade propriamente dita, não há, pois, comunicações ostensivas com os espíritos, a despeito de haver, entre nós e eles, comunicações morais, quando, persuadidos de que nos ouvem, lhes endereçamos pensamentos. Médium de fato, contudo, é aquele que se comunica com os espíritos, não só se dirigindo a eles, mas deles obtendo distinguida resposta. Ao encontro deste entendimento, vem o fato de que a mediunidade é uma concessão;[5] isto é, radicada na constituição física do indivíduo, trata-se daquilo que permite ao seu perispírito, segundo Erasto, “uma força de expansão particular, que lhe suprime toda refratariedade.”[6] Ora; se médiuns seriam os que podem servir de medianeiros entre os espíritos e os homens,[7] é que os haveria que positivamente não o podem, pois não têm as disposições orgânicas para tanto. Tendo vida psíquica, recebe pensamentos do mundo invisível, embora não lhes distinga a origem. E eis aqui mais uma lição em que Kardec volta a mencionar ausência de mediunidade nalguns raros indivíduos: “Os médiuns facultativos têm consciência do seu poder e produzem fenômenos espíritas pela própria vontade. Essa faculdade, embora inerente a espécie humana, como dissemos, não se manifesta em todos no mesmo grau. Mas, se são poucas as pessoas que não a possuem, ainda mais raras são as que produzem grandes efeitos como a suspensão de corpos pesados no espaço, o transporte através do ar e, sobretudo, as aparições”.[8] Portanto, como “a faculdade propriamente dita é orgânica”,[9] sua simples existência, ou falta, no corpo físico de alguém, é a condição sine qua non para a produção, ou nulidade, mediante sua pessoa, de qualquer fenomenologia mediúnica. Vale ponderar ainda que, se raros eram, no séc. 19, os que, da mediunidade, não possuíam sequer um rudimento, na população de hoje, menos raros serão esses tais. Esta instrução nos deixará estremes de dúvidas. Ipsis verbis: “O mal é que muitos médiuns confundem a experiência, fruto do estudo, com a aptidão, que decorre apenas do organismo. Julgam-se elevados e mestres, porque escrevem com facilidade, rejeitam todos os conselhos e se tornam presa de espíritos mentirosos e hipócritas, que os apanham lisonjeando-lhes o orgulho”.[10]


[1] O Livro dos Médiuns, 174, 209, 226: 1ª 

[2] O Livro dos Médiuns, 196. 

[3] O Livro dos Médiuns, 305. 

[4] O Livro dos Médiuns, 220: 8ª 

[5] O Livro dos Médiuns, 220: 14ª, e 306. 

[6] O Livro dos Médiuns, 236. 

[7] O Livro dos Médiuns, vocabulário espírita. 

[8] O Livro dos Médiuns, 160. Cf. 188: “(...) Médiuns facultativos ou voluntários: os que têm o poder de provocar os fenômenos por um ato da própria vontade. (Ver n.° 160.) Por maior que seja essa vontade, eles nada podem se os espíritos se recusam, o que prova a intervenção de uma potência estranha”. 

[9] O Livro dos Médiuns, 226: 1ª 

[10] O Livro dos Médiuns, 192.